As ideias são como as camisolas
No mundo de produtos rápidos em que vivemos tudo parece produzido e óbvio, tudo parece superficialmente contido e finalizado: “Está ali e existe, então vou usar.”
Esta sensação e certeza leva-nos a negligenciar violentamente os profundos e complexos fios de interação e criação que levam a que uma conclusão, uma ideia, um produto ou uma camisola se materializem.
Recentemente vimos o plágio das camisolas poveiras da Póvoa do Varzim por uma ‘designer’ norte-americana. Mas, na realidade, o que parece ser apenas uma camisola é algo bastante complexo.
Senão vejamos: temos a lã, que tem o seu próprio ciclo e fluxo. Nasce e cresce do corpo da ovelha, e cada animal tem a sua própria família, a sua experiência de vida de nascer, crescer e morrer em determinada paisagem, num lugar específico, passando pelas intempéries e mudanças de estação, ruminando, pulando e sempre em rebanho. A qualidade do seu pelo, da sua lã, vai depender da sua alimentação, de como é tratada, de toda a sua experiência e relação de vida. Cada camisola contém todas as dimensões e interações de cada ovelha. Depois de a lã ser tosquiada, tem de ser lavada, tingida, cardada e fiada. Processos milenares de trabalho manual, hoje industrial, que emprestam ao fio toda a história das mãos que o tocam e transformam. Só aí o fio está pronto a ser tecido, expressando padrões. E os padrões dependem de tudo o que dá forma ao lugar, ao seu povo, às suas crenças e lendas. O padrão que aparece nas camisolas poveiras não é um acaso, mas uma expressão imanente de todo o contexto, desde as mãos que os fazem aos corações que o tecem às histórias que contam. No caso, cada mulher, com a sua experiência desta arte tradicional, empresta a cada volta e ponto um pouco de si mesma, ligando a origem dos prados que alimentam as ovelhas à identidade do lugar recriando os padrões que emergem em cada camisola.
Quando sentimos apropriação por alguém, que simplifica e reduz uma prática, um conhecimento, um produto ou uma ideia a algo que simplesmente “existe e logo pode ser (apropriado e) usado,” observamos um ato violento de objectificação, um desvincular da própria complexidade dinâmica e viva das coisas. Sentimos no corpo e, não apenas no ego, mas na alma.
Sou muitas vezes confrontada com plágios das minhas palavras, dos meus processos e conclusões. Não se trata de ser dona de algo, mas uma questão de vida e responsabilidade. É que as ideias, sentires, pareceres e conclusões que apresento em aulas, artigos ou livros não estavam ali à vista, prontas a serem colhidas e expressadas. Foram semeadas, regadas, nutridas, perdidas e recuperadas, compostadas, testadas e experimentadas. Num processo profundo tão dilacerante como delicado, de presença e escuta, numa viagem desafiante às profundezas das coisas. Apesar de parecerem simples ou óbvias, nascem do meu próprio processo de vida, das minhas dúvidas e perguntas, das minhas alegrias e tristezas, da humildade de não saber na disponibilidade de algo encontrar (sempre apenas uma parte).
As ideias e perspectivas que apresento são vivas e imanentes ao meu contexto concreto e são, é claro, limitadas à minha experiência. Durante estas dezenas de anos de adentrar no fluxo da consciência e resgatar peças (sempre em metamorfose) do caminho, sou muitas vezes confrontada pela cópia simplificada (e sem referências) de conclusões que levei anos – numa viagem dentro e fora cheia de percalços desde descidas acentuadas a subidas árduas – a sistematizar, completar e expressar.
Tal como a complexidade de uma camisola que é a concretização da história multidimensional e milenar, que expressa as relações profundas entre os prados e as estações, os movimentos e ferramentas ancestrais da fiação, as histórias de cada animal, pessoa e lugar, num padrão tecido, assim as ideias são também vivas. Revelando-se (e escondendo-se) no caminho num passo de cada vez.
É claro que todos temos e somos inspirados por outros lugares e pessoas que os expressam. As minhas inspirações, tal como refiro tantas vezes, são muitas, entre as quais: Bayo Akomolafe, Nora Bateson, Pegi Eyers, Tyson Yunkaporta, David Abram, Laura Sewall, Vanessa Andreotti, Jürgen W. Kremer, Nick Totton, Thomas Berry, Mary Watkins, Charles Eisenstein, Chris Robertson, Derrick Jensen, Robin Wall Kimmerer e Bill Plotkin. E muitos outros.
No meu site pessoal tenho as seguintes palavras: “Todos os conteúdos deste site foram criados, organizados e estruturados em função de uma prática e experiência pessoais. Ao usar expressões ou frases cite a fonte. Obrigada!”
Os direitos autorais não são uma questão de posse ou controle, mas uma forma de honrar quem trilhou o caminho antes de nós. Uma maneira de manifestar gratidão, pela complexidade dos desafios vivenciados, pelo que foi desbravado e resgatado previamente, e que nos traz significado onde estamos. Não nos podemos esquecer que todos caminhamos às costas dos nossos ancestrais, os sem nome. Que pela sua vida nos manifestaram, com a sua voz única ecoando ainda em cada um de nós.