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História da quase extinção da floresta nativa Portuguesa
Podemos constatar essa alienação numa breve revisão da história da quase extinção da floresta nativa portuguesa, encontrando comportamentos extrativistas e profanadores repetidos à exaustão desde a antiguidade. Claro, indícios dessa relação baseada no medo estão em todos os contos populares europeus que consideram a Floresta um lugar monstruoso e perigoso, onde nos podemos perder, ferir e até morrer – carregando débeis e indecifráveis fios de revelação e iniciação.
De 7.000 anos atrás até o século IV, as comunidades humanas locais já cortavam e queimavam árvores, moldando a paisagem. As invasões romanas da Península Ibérica, de 218 AEC a 410, forneceram madeira e metais locais desta terra para o resto do império, e os grandes cortes começaram.
Mais tarde, na Baixa Idade Média, de 476 a 1000, os carvalhais e castanheiros forneciam lenha e carvão para as indústrias e populações locais. Os grandes cortes continuaram, embora a Península ainda fosse principalmente arborizada com bosques nativos. Com a invasão muçulmana no século VII, as necessidades de madeira aumentaram exponencialmente, com frotas comerciais e campanhas militares cristãs e muçulmanas lutando entre si. A extração e o pastoreio intensivo aceleraram ainda mais a degradação. A constante procura de carvão, lenha e madeira por parte das populações locais cristãs, judias, muçulmanas e moçárabes dificultou a regeneração da Floresta.
Ao longo dos séculos XII a XIV, o comércio internacional aumentou a demanda por madeira e lenha. A antiga Mata nativa diversificada, um ecossistema resiliente ajustado à época natural de incêndios do território, começou a ser substituída por monoculturas de pinheiros de crescimento rápido —embora árvores resinosas nativas, o sistema de monocultura tornou difícil para vastas áreas resistir a incêndios florestais naturais ou induzidos pelo homem. De forma paradoxal, depois dos cristãos demonizarem e profanarem a paisagem, os mosteiros tornaram-se guardiões de bolsas da floresta, garantindo reservas funcionais de madeira para consumo interno. Por volta do século XIII, a degradação sistemática da Floresta, já residual e esparsa, criou baldios por todo o território.
Assim, chegamos ao século XV, com o solo cada vez mais ralo e seco, facilmente levado pelas chuvas, devido à demanda constante de madeira pela aceleração de indústrias predatórias como a metalúrgica, vidreira e naval; pastoreio intenso; incêndios e queimadas, abrindo espaço para a agricultura; fabricação de cinzas para sabão; extração constante de toros, lenha e carvão. Na época das invasões marítimas, mais de cinco milhões de carvalhos foram cortados para construir navios que escravizariam e interromperiam culturas e paisagens em todo o mundo. Documentos oficiais da época já falam de reclamações da população local sobre a crescente falta de madeira e a degradação do ambiente natural. E assim, grande parte da floresta foi extinta, e a maioria das nossas florestas nativas desapareceram.
Ao chegarmos ao presente, entendemos que a crise é de percepção, pois a Floresta é vista como um lugar perigoso e mero recurso há mais de mil anos, as consequências da ignorância e confusão entre monocultura e uma verdadeira mata nativa e biodiversa.
Claro, os humanos há muito usam árvores, sua madeira e casca, para ferramentas, casas e barcos, lenha para cozinhar, aquecer e iluminar, carvão para fornalhas e escrever, e cinzas para sabão. Mas as atitudes mudaram e aqui as árvores já não são sagradas, assim como as montanhas, pedras ou rios. As comunidades humanas locais pararam de ouvir os gritos do solo e das árvores, cortando e queimando indiscriminadamente. Vorazmente. Os homens sucumbiram a hierarquias violentas no medo, na guerra, no frio e na fome, esquecendo-se de que esses Anciãos mais-que-humanos eram os seus parentes sagrados e cuidadores originais.
As comunidades humanas locais cortaram o diálogo mais-que-humano e esqueceram as canções e histórias —estes novos grupos humanos miseráveis e pobres só se lembravam da fome, da dor, do sofrimento e da morte.
Assim, os ecossistemas florestais locais não resistiram aos cortes rápidos e violentos dos homens, ávidos, gananciosos, sedentos e esfarrapados. Com os incêndios humanos e a velocidade das amputações, os animais que procuravam refúgio na mata também começaram a desaparecer. Os ursos foram caçados até a extinção porque eram animais nobres —reis cobiçavam a suas mãos como troféus. Os castores foram arrancados das suas peles e também se foram, pois sem as árvores e as suas raízes a água não fica, e tudo ficou seco.
Mas não apenas a fome e a miséria foram os motores da violenta destruição humana nesta terra, mas também a ganância e o desejo insaciável aniquilaram o lugar –as casas e os barcos ficavam cada vez maiores, e os fornos de vidro e cal ficavam cada vez mais quentes. Os homens deixaram de pedir permissão; apenas perfuraram, rasgaram, acumularam, e roubaram terras para as suas colheitas, e os rebanhos domésticos comeram o pouco que restava. Enquanto alimentavam campanhas expansionistas de devastação ultramarina, os portugueses saqueavam a sua própria terra, imitando as mesmas ações, escravizando terras e pessoas, pois já tinham esquecido como agir com integridade há milénios.
Recordemos que esta breve revisão da história da Floresta Portuguesa só chega ao século XV, nem sequer perto da intensa monocultura de eucalipto para a indústria do papel e dos consequentes violentos incêndios; das barragens fluviais alimentadas pelo aumento exponencial da procura de energia; ou das políticas destrutivas de mineração de lítio do século 21.
Esta breve descrição é apenas um vislumbre, servindo como investigação do que é uma Floresta para uma cultura baseada no medo, predatória e extrativista. Uma cultura que cortou os laços de parentesco há mais de mil anos. O lugar é silenciado como recurso inerte, para uso exclusivamente humano, profanado e sistematicamente violentado pelas nossas próprias mãos, enquanto tolamente o chamamos de progresso.
Assim, este livro-amuleto reúne esses frágeis fios, re-tecendo e fabulando histórias antigas. Tomando como referência quatro narrativas populares portuguesas, dos sonetos aos contos populares. Demonstrando que essa mentalidade cultural dissociada fermenta há milénios neste lugar, com consequências diárias para todos nós –e as invasões do século XV já são sintoma de uma cultura profanada e violenta. Ao mesmo tempo, ao longo destas páginas, orações e histórias fabuladas de um paradigma animista (versus as atuais lentes antropocêntricas), são tecidas para reacender um diálogo somático mais que humano.
Abrindo um espaço ritual diferente para uma cultura que esqueceu que a Floresta é um lugar soberano, criador de significados e histórias, fecundador de alimentos, medicinas, revelações e memórias; uma cultura que se esqueceu das cerimónias e rituais comunitários para pedir permissão, contar e ouvir histórias, cantar canções ou deixar oferendas.
Ainda podemos ouvir os ecos frágeis das danças antigas e as muitas vozes que as cantavam, o tamborilar ritmado, os pés batendo no chão, os gritos do coração, as melodias dos pássaros, os uivos e os rugidos?
União, conversas sussurradas, segredos compartilhados, relatos comunitários, histórias reveladas, cerimónias sentidas, alegrias e lutos, rituais coletivos e dor viva?
Ainda podemos deliciar-nos em sonhar com as memórias dessas conversas nutritivas e vibrantes de parentesco multiespécie?
[continua brevemente]
REFERÊNCIAS
- “ALMOÇAGEME, DOIS MIL ANOS DE HISTÓRIA.” ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA DE BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE ALMOÇAGEME, http://www.bvalmocageme.pt/associacao/historia/historia_de_almocageme/. Accessed 15 May 2023.
- Baptista Pato, Heitor. “A SERRA DE SINTRA (PORTUGAL): CULTOS À LUA, AO SOL E A SATURNO.” celtiberia.net, 2007, https://www.celtiberia.net/es/biblioteca/?id=2943.
- Caetano, Maria Teresa. Cavalos do vento e ginetes do ocaso: do paradeisos à partenogénese do Monte da Lua. Doutorada em História da Arte; Investigadora do ARTIS — Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; ORCID 0000—0002—6591—0238 mtvcaetano@gmail.com. no. 19, Revista Portuguesa de Arqueologia, 2016, pp. 175—194.
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- Oliveira Borges, Marco. ESTUDOS DE PAISAGEM — PAISAGEM CULTURAL MARÍTIM A DE SINTRA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICO—ARQUEOLÓGICA. Edited by Pedro Fidalgo, vol. 3, Inst ituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2017.
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- Jorge Paiva — “A relevância da fitodiversidade no Montemuro”
- Francisco Álvares e José Domingues — “PRESENÇA HISTÓRICA DO URSO EM PORTUGAL E TESTEMUNHOS DA SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES RURAIS”
- T. ANTUNES — “Castor fiber na gruta do Caldeirão, Existência, distribuição e extinção do castor em Portugal”
- Nicole Devy — Vareta — “Para uma geografia histórica da floresta portuguesa, AS MATAS MEDIEVAIS E A «COUTADA VELHA» DO REI”
- Nicole Devy — Vareta — “Para uma geografia histórica da floresta portuguesa, DO DECLÍNIO DAS MATAS MEDIEVAIS À POLÍTICA FLORESTAL DO RENASCIMENTO (séc. XV e XVI)”
- BATALHA, Sofia. Cartografia do livro “O Santuário” – parte I. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-45/cartografia-do-livro-o-santuario/, número 45, 2023
Artigo publicado aqui
BATALHA, Sofia. Cartografia do livro “O Santuário”. Vento e Água – Ritmos da Terra, https://ventoeagua.com/revistas-online/revista-46/cartografia-do-livro-o-santuario-parte-2/, número 46, 2023
🌳 Estes vários livros são como vários territórios, lugares diferentes de resgate da polimorfa Imanência.
Peregrinações caleidoscópicas em profundidade, às raízes da identidade moderna, em todos os seus preconceitos, intrínseca violência e absurdas limitações. Diferentes jornadas de amor pela poesia da complexidade, da diversidade e da metamorfose. Tecelagens de histórias vivas que nos recordam do que esquecemos, da sacralidade do chão e da Vida. Complementos ao vício da transcendência, em rigor e responsabilidade.