Aqui e agora, somos levados a acreditar que precisamos de produzir o nosso valor, e para isso, são-nos ensinadas tácticas de guerra.
Ao nos adaptarmos à sociedade humana, precisamos de encontrar o nosso lugar e poder autêntico, afirmando talentos e descobrindo a voz singular. A cultura contemporânea diz-nos que estes caminhos são activados em isolamento e exclusivamente para cumprir necessidades individuais. Não necessariamente de forma nutridora da alma ou sustentada pela comunidade.
Há uma guerra em curso.
A terapia e as ferramentas de auto-desenvolvimento actuais actuam em objectivos, trazendo ferramentas para planear, alcançar, e produzir efectivamente valor. Nesta perspectiva, transformamos crenças e questões familiares, geralmente encontrando os culpados, os que não estavam presentes, que não nos ouviram ou abraçaram quando mais precisávamos. Viajamos por memórias e traumas, vulnerabilidades, e sensibilidades.
Continuamos a vigiar o horizonte.
Estes métodos, totalmente adaptados à cultura ocidental, ensinam-nos sobre o controlo, os benefícios de conquistar a vontade e disciplina, de não sermos vulneráveis, ensinando-nos a ser fortes. Gerindo as emoções que colapsam as necessidades da nossa alma, levando-nos a ser sempre eficazes e produtivos. Aprendemos assim a abordar cirurgicamente todas as áreas da nossa vida, compartimentando todos os seus aspectos.
A guerra está próxima.
Mas acima de tudo, precisamos de provar o nosso valor, por isso tentamos controlar os pequenos detalhes. Aprendemos a reunir armas e conquistar o nosso lugar, o tempo e todos os pequenos pedaços da existência. Somos ensinados a subjugar-nos, pois só podemos provar o nosso valor quando exercemos controlo sobre os sistemas orgânicos e surpreendentes da vida (geralmente tirando da natureza, de outros, ou do próprio tempo).
Consegues ouvir os inimigos a escalar as paredes?
Quando o nosso valor é finalmente afirmado e reconhecido na sociedade, temos de o demonstrar. Temos de ser capazes de o expressar assertivamente e de o manter visível para os outros. Por isso, colocamos bandeiras nas terras descobertas, controlando o espaço conquistado, afirmando que precisamos de proteger os nossos métodos, perspectivas, posições, ou relações.
Acreditamos que existe uma necessidade humana básica de conquistar tudo para nos sentirmos seguros, porque não nos é permitido espaço fora de controlo e conquista. Esta cultura traduz a necessidade antiga e visceral de valor e ligação numa reivindicação de autoridade, uma exigência de dominar o outro, subjugando-o à nossa vontade. Somos levados a acreditar que isto é natural e normal.
Estás pronto para o combate?
Continuamos a cavar trincheiras, isolando-nos. Construindo muros de pedra para defender o nosso sentido de valor e atacando qualquer pessoa que faça o mesmo. Patrulhamos as fronteiras do espaço social que ocupamos, preocupando-nos com a competição, os seus planos, movimentos, e supostas invasões. Vigiamos o horizonte em busca de ameaças, tentando manter o território conquistado em segurança.
Consegues ouvir os gritos de guerra?
Para estarmos plenamente aqui, presentes com tudo o que somos, as nossas perdas, tristezas, alegrias, talentos, ou mágoas, os métodos terapêuticos devem fornecer formas de encarnar generosamente os diversos “eus” multidimensionais inerentemente valiosos, que nos compõem.
Há uma brecha na parede?
Mas por agora, são apenas formas de ruptura e colapso do nosso real e inerente valor, esquecendo quem somos no grande esquema das coisas. Os instrumentos da nossa cultura são frequentemente fechados numa visão narcisista do mundo, onde a nossa narrativa e necessidades são os assuntos mais importantes, negligenciando cegamente a nossa fundamental existência relacional.
Qual é a altura da tua muralha?
Exactamente porque a cultura em que vivemos despoja tudo o que tem valor inerente, exige que continuemos a tornar-nos dignos, sempre a pressionar para sermos visíveis para viver. É uma sociedade empobrecida. Uma sociedade que não reconhece subtilezas do valor real da vida. Fragmenta, normaliza e encaixar em formas unidimensionais e monolíticas – seguindo cegamente horários de tempo lineares, esquecendo os ciclos ou as membranas profundas do pensamento que tocam tudo o que existe. Ignorando que todo o corpo sagrado não é para ser medido ou comparado, mas vivido como templo de alma e espírito.
Precisamos de recuperar a cabeça-espírito, a alma-coração, o instinto-viscera, e a expressão-mãos, pois todos os tecelões fundamentais das nossas vidas que devem funcionar em uníssono.
Podemos recordar como nos relacionamos, para que o trabalho interior não seja feito unicamente para reunir poder, usando-o para nos conquistamos ou aos outros. Vivendo em realidade relativa, não precisamos de derrotar o inimigo, pois estamos apenas a conquistar-nos a nós próprios, isolando-nos e confinando-nos.
Conseguem ver as paredes a desmoronarem-se?
Conquistando os nossos pensamentos ou emoções e controlando o nosso corpo ou vidas de formas cirúrgicamente complexas, normalizamos e domesticamos o que somos, seccionando o nosso antigo e natural ser multidimensional em algo que se encaixa perfeitamente nos padrões da sociedade contemporânea.
Vamos recuperar o núcleo, o centro original da nossa sabedoria, que é selvagem e livre e não precisa de exercer controlo. Só precisa de fluir e de estar completamente aqui e agora.
Vês o horizonte?
©SofiaBatalha
[Disclaimer: Todas as palavras e conceitos tecidos no meu trabalho nascem através da minha Vida, naturalmente tendenciosa, e sempre limitada percepção das coisas, não assumindo que carreguem qualquer verdade absoluta. Escrevo a partir de um contexto de baixa intensidade sobre o norte global, em profunda consciência e responsabilidade pelo ecocídio e genocídio continuado pela modernidade.]
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Por Sofia Batalha
Sou ‘designer’ por formação académica, professora por acaso, escritora por necessidade visceral e investigadora independente por curiosidade natural. Sou mamífera, autora, mãe, mulher e tecelã de perguntas. Desajeitada poetiza de prosas sem conhecimentos gramaticais. Peregrina entre paisagens interiores e exteriores, recordando práticas cósmico-ctónicas em presença radical, escuta activa, arte, êxtase e escrita
Autora de nove livros e editora da revista online e gratuita Vento e Água, podcast Re-membrar os Ossos e Conversas D'Além Mar.