Com toda a sua destruição, crueldade, fúria e coerção, a violência da colonização foi também utilizada em nós. Ainda mais no passado, está muito presente como trauma cultural. Embora muito mais anteriormente, através do imperialismo romano, genocídio, inquisição, guerras e conquistas, fomos também colonizados. Durante séculos, vivemos como escravos e servos, com pouco ou nada, e sempre à mercê das flutuações de poder. Esta violência está muito presente no nosso corpo. No entanto, chamamos-lhe cultura, e temos muita dificuldade em imaginar o contrário, pois fomos levados a acreditar que somos superiores moral e intelectualmente.
Porque acreditamos ter sido expulsos do paraíso, baseamo-nos no esquecimento brutal em que somos forçados a mutilar os fios da sabedoria contextual ancestral, os mitos, as histórias e memórias – dilacerando a soberania intrínseca que co-cria a vida.
Assim, continuamos a controlar e a explorar tudo e todos, chamando-lhe produtividade e sucesso.
Não trago isto como vitimização ou desculpa para todas as atrocidades que nós, portugueses, perpetramos em todo o mundo, especialmente no Brasil, contribuindo também para a violenta diáspora africana, transportando mais de 5 milhões de corpos negros através do Atlântico, além de toda a violência e destruição da natureza e culturas em todo o lado. Porque não há desculpa para isso.
Quatro mil anos após a nossa colonização, não nos podemos dar ao luxo de o esquecer novamente. Precisamos de regenerar e co-criar vida em toda a sua exuberância e diversidade.
No entanto, eu sou privilegiada. Não pedi este privilégio de tom de pele, mas tenho-o, e é real. Com todas as limitações de ser uma mulher nesta cultura de guerra, o manto branco em que estou envolvida dá-me mais liberdade e dignidade. E é assustador e demente que isto seja real, todos os dias e a cada momento. Sendo mulher, fui agredida sexualmente duas vezes, com dez anos de diferença, por figuras de autoridade, e a porta através da qual toquei o trauma colectivo foi através do meu próprio trauma. É triste e claro que teve as suas consequências para mim.
Mas não se trata de mim. É sobre a cultura que permite, recria, e sustenta isto. O enorme problema é realmente individualizar o trauma quando ele é realmente colectivo.
É apenas mais uma forma de controlo, mantendo as vítimas, sustentando os perpetradores, ameaçando e intimidando. Estes são movimentos culturais insidiosos que nos mutilam a cada silêncio ou grito.
Viver regenerativamente é assumir a dor e alimentar a vida em todas as suas formas. Não é um processo individual – nunca foi -, é comunitário e cooperativo. O que, no fundo, é o que este sistema colonial/económico sempre tentou quebrar através do individualismo, dividindo para reinar. Temos de re-significar o trauma cultural, não como indivíduos, porque nunca foi exclusivo de nenhum indivíduo em particular, mas sim uma parte normativa de uma estrutura colonial.
Relembremo-nos de quem somos! Guardiões da vida!