O Rio da Sabedoria
Registo de um sonho que tive há mais de um ano.
Encontrei-me com ela no cimo da colina. Desaguei aqui depois de anos a deambular e nadar em pequenos ribeiros afluentes, águas cristalinas e não muito profundas, brotando do coração da terra. Estes riachos de abundante água fresca correm livres pelas encostas, nutrindo as margens e sendo abraçados pela vegetação. Esta água jovem e doce tem alguma pressa de passar pelas pedras, e o seu caminho funde-se com o lugar, irrigando o chão e saciando plantas e animais. É uma água que acaba chegar à superfície, com todo o ímpeto e frescura das profundezas, contemplado as nuvens e o céu na sua breve liberdade, num percurso ligeiro e tranquilo.
Quando cheguei ao topo da colina, ela já me esperava, a Anciã sem nome, a mentora do não saber. Aqui de cima das pedras a paisagem era diversa, viam-se os tributários e o rio principal onde desaguavam, numa rede aquática viva e a perder de vista, com o corpo de água central a ser alimentado de todas as direcções. Ela perguntou-me se estava pronta e, a medo, respondi que não. Depois de anos a circular pelos pequenos rios que alimentavam este grande e selvagem percurso de água, estava agora curiosa por desvendar e ser conduzida por este grande Rio, mas o medo. Ai o medo. O Rio da Sabedoria diz-me a Anciã. Fico apreensiva pela mudança de escala, por tomar contacto com um rio de margens tão largas. Não lhe vejo o fundo e o seu fluxo é inexoravelmente mais forte. Sinto-o a atrair-me e a arrastar-me, mas resisto.
Não há mapa deste Rio e as suas poderosas correntes de águas vivas e conscientes não têm fim – é eterno e infinito-. Este Rio não sonha com o Mar, mas sonha-se e recria-se. Move-se e transforma-se a cada momento, a cada curva e passagem.
A sua água, de sabedoria pura, tem uma textura suave, quase como se pudesse realmente ser agarrada e contida nas mãos ou na mente – ilusões apenas -. Não a bebas, advertiu-me, passa-a pelos lábios e nada mais. Não mergulhes – continuou – o pleno êxtase de tudo saber não te fará mais sábia, mas louca, arrastando-te de volta ao abismo do caos original. Navega sem saber o caminho, seguindo a corrente com as ondas a lamber o casco, passando as mãos pela água, sentido a sua textura suave a temperatura fresca, diz-me enquanto empurra o barco e se despede de mim. Estas águas tudo saciam, ainda me gritou da margem.
Afasto-me e entrego-me à corrente. Estas são águas de memórias, correntes de saberes, fluxos de conhecimento. Os seus enigmas inundam-me e transformam-me. Mas tal como a água que enche e esvai, assim é a sua presença.
Neste misterioso fluxo ancestral estão submersas todas as razões, todos os porquês, todas as conclusões e sentires, em todas as suas dimensões e cambiantes. Em todos os seus sabores, cheiros e texturas. Esta água viva desperta os sentidos, abrindo alquimicamente o coração e a mente.
Aqui não há certezas, nem categorias, nem armazenamento. Olhando através das águas profundas, sinto a sua poderosa autoridade e consigo discernir o medo que viaja comigo. O medo de não saber, de não conter ou controlar.
A fluência eterna e selvagem destas águas tudo carrega e tudo liberta, dando lugar a possibilidades que emergem da espontaneidade da própria vida. Reveladas nos momentos surpreendentes de êxtase e conexão, entre gotas iridiscentes que me salpicam.
Todas as múltiplas paisagens por onde passa pulsam e rendem-se a este vigoroso rio. Por sua vez as águas também se entregam a cada momento a cada lugar, trazendo consigo a abundância da reciprocidade. Resta-me capitular também perante a intensidade deste diálogo ancestral, do qual apenas ouço ecos e fragmentos e permitir-me ser levada pelo Rio da Sabedoria.
Este é o corpo principal onde todos os afluentes convergem. Este é o caminho da singularidade que agrega todas as nossas facetas e missões singulares. Esta não é uma viagem plácida, mas um percurso intenso e íntegro de Vida.