Há alguns anos, acordei a sentir-me perdida e em luto. Sonhei em ser selvagem, totalmente livre e em relação. Quando acordei, sofri a antiga e profunda perda de sentidos apurados e de consciência radical, de viver ritualmente como parte integrante do cosmos.
Antes de os humanos aprenderem a temer a si próprios, viviam em profunda ligação com tudo o resto – abraçados no beijo essencial da terra negra sob os pés e na potente carícia dos céus acima, embalados nos ossos dos antepassados.
Para nos ligarmos ao antigo ser selvagem que transportamos desde o início dos tempos, precisamos do silêncio profundo da presença radical infinita. Mas estamos imersos em ruídos de modernidade omnipresentes. O fundo branco estático distrai-nos do que está à nossa frente. À nossa volta. Constantemente. Neste instante, deixem os vossos instintos sentir para além da turbulência da modernidade. A pele humana sente aquilo que não podemos ver ou quantificar. Sentir a vida a toda a volta.
O longo processo da nossa domesticação é o nosso desaparecimento. Esquecemo-nos. A amnésia do inter-ser sempre co-criando memórias emaranhadas da verdadeira força, num mundo misterioso e abundante.
Línguas esquecidas, paisagens sonoras, texturas e pontes de ligação com outros seres, diferentes conhecimentos telúricos e cósmicos.
Esquecemo-nos do verdadeiro valor da própria vida sagrada. Tornámo-nos mais pequenos. Sozinhos e com medo. Ilhas de esquecimento e isolamento, acreditando que o medo é a única lente. E para o conquistar, a única solução.
Sim, a natureza é selvagem e violenta. E nós também o somos. Sim, a natureza é espontânea e dura. Nós também somos. Mas é também criativa, inventiva, mágica, misteriosa, sempre em mudança e em evolução. Se pudéssemos voltar a ouvir as suas histórias e a sua velha sabedoria, voltaríamos a acarinhá-la.
O selvagem são paisagens multidimensionais complexas – sem mapas lineares para a atravessar, sem ponto A para ponto B. Para os atravessar, precisamos de pés enraizados no chão, cantarolando, pois, somos o lugar selvagem. Estamos nele, enraizados. Somos as rochas e as montanhas, o vento e as águas – carne sagrada em solo sagrado.
Anseio por ser selvagem, e isso sussurra-me de volta, chamando-me – ecoando o passado profundo. Sinto os pêlos na parte de trás do meu pescoço a levantarem-se – arrepios que sobem pela coluna. Lembro-me de observar e ser observada em longas conversas silenciosas com outros seres. Viver a terra como um lar co-criado e não como um estranho a ser possuído, usado, ou conquistado. Nutrindo e cuidando de toda a criação. Presente de forma lúdica e empática. Recordar velhas histórias de cuidados e não apenas de destruição. Caminhando potentes e livres, desejosos do que é, em profunda e misteriosa relação com a terra e cuidando de todos os seus habitantes – vivendo de forma sagrada, intencional, activa, e participando na criação sempre desdobrada.
Lembre-se simplesmente.
[Disclaimer: Todas as palavras e conceitos tecidos no meu trabalho nascem através da minha Vida, naturalmente tendenciosa, e sempre limitada percepção das coisas, não assumindo que carreguem qualquer verdade absoluta. Escrevo a partir de um contexto de baixa intensidade sobre o norte global, em profunda consciência e responsabilidade pelo ecocídio e genocídio continuado pela modernidade.]
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Por Sofia Batalha
Sou ‘designer’ por formação académica, professora por acaso, escritora por necessidade visceral e investigadora independente por curiosidade natural. Sou mamífera, autora, mãe, mulher e tecelã de perguntas. Desajeitada poetiza de prosas sem conhecimentos gramaticais. Peregrina entre paisagens interiores e exteriores, recordando práticas cósmico-ctónicas em presença radical, escuta activa, arte, êxtase e escrita
Autora de nove livros e editora da revista online e gratuita Vento e Água, podcast Re-membrar os Ossos e Conversas D'Além Mar.