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A Fome
O jornalista dos EUA Dahr Jamail recorda a “doença da exploração”, no prefácio do livro “Undaunted: Living Fiercely into Climate Meltdown in an Authoritarian World” de Carolyn Baker. Também chamada patologia canibal ou wétiko (termo usado por grupos indígenas norte-americanos – wétiko para os Algonquin, windigo para os Ojibwa). Esta expressão foi re-tecida há mais de trinta anos pelo professor nativo americano, Jack D. Forbes, no seu livro, “Columbus and Other Cannibals. O canibalismo, como a Forbes o definiu: “é o consumir da vida de outrem para o seu próprio fim privado ou lucro.”
Ele continua a enlaçar esta expressão com a cultura capitalista contemporânea: “imperialismo e exploração são formas de canibalismo e, de facto, são precisamente aquelas formas de canibalismo que são mais diabólicas ou más”.
Segundo as perspectivas dos povos nativos um pouco por todo o mundo poucas, se alguma, sociedades à face da Terra têm sido tão avarentas, cruéis, violentas e agressivas como algumas populações europeias.
Um ancião Apache Chiricahua refere que: “O homem branco abateu, durante um curto período, 50 milhões de búfalos, porque milhares de nós confiamos neles, e em menos de uma geração, aniquilaram-nos. E eles orgulham-se disso, e fotografam o búfalo morto, como se fosse preciso um homem de verdade para atirar num animal com uma espingarda movida a energia de longe.” Este é apenas um ponto fractal de uma narrativa que se repete e repete, deslaçando os preciosos nós da complexa rede ecossistémica que nos sustém a todos.
Falamos de búfalos como falamos de pombos-passageiros, de cabra montesas, ursos, zebros, teixos, castanheiros ou carvalhos.
Falamos da Fome tornada ganância, do vazio e do medo. Falamos dos actos violência perpetrados por tecnologias de destruição (alguns diriam “defesa” ou “progresso”). Tomamos a coragem para assumir que o nosso conforto inocente vem da avareza, da crueldade, da violência e agressividade. A nossa cegueira da alma também. Do medo da escassez que nos faz tomar tudo.
Por outro lado, Jorge Paiva na sua apresentação “A relevância da fitodiversidade no Montemuro”, recorda-nos de como estes grandes feitos tecnológicos, como “as descobertas” (aqui entre parêntesis, pois foram de facto as grandes invasões e matança – o território nunca esteve vazio), tiveram um enorme custo no nosso território. O autor refere que “os Descobrimentos foram a maior desgraça para as florestas de Portugal Continental, pois cada nau necessitava madeira de 2000-4000 carvalhos.”, e continua dizendo que “durante essa época derrubaram-se mais de 5 milhões de carvalhos. Foi assim que se desflorestou grande parte do país, tendo desaparecido muitos dos nossos riquíssimos carvalhais, plenos de Biodiversidade.” A redução de biodiversidade continuou pelos séculos fora com a plantação de monoculturas de pinheiro e eucalipto (crescimento rápido para alimentar a economia humana, enquanto enfraquecem a teia da vida). E com isto a quase extinção das ricas florestas de espécies nativas que detinham a sabedoria do fogo, tornando as pequenas bolsas ainda existentes frágeis e sem possibilidade de protecção.
Recordemos agora a definição de canibalismo, wékito, de Forbes: “o consumir da vida de outrem para o seu próprio fim privado ou lucro.” Continuamos a falar de Fome tornada ganância. Da incompreensão do que é realmente um ecossistema saudável e diverso, da incapacidade de distinguir uma monocultura de uma floresta antiga, viva e vibrante. Do tirar demais e dar de menos. Da ilusão de superioridade. Deixamos também de ouvir a sabedoria do fogo, as suas histórias e ensinamentos.
Chegamos então aqui, a 2022, aos dias em que o Vale Glaciar do Zêzere, património Mundial da Unesco, continua a arder.
São treze quilómetros de extensão de floresta nativa e ancestral, quase totalmente em cinzas. Uma pequena bolha de centenas, milhares, milhões de anos de biodiversidade única, preciosa, rica. Um eco de um passado de florestas frondosas e plenas de relações interespécies. Não se replanta se não se cuidou. Estes fogos são também resultado de gerações de dissociação e décadas de más políticas de “gestão do território”, desde má gestão da água às monoculturas de crescimento rápido que esgaçam o tecido complexo da Vida e dos ecossistemas.
Não se reconstrói um ecossistema desta ancestralidade e complexidade, não se replanta o seu valor. O tempo aqui deixou de ser nosso aliado. Perdemo-lo. Da Fome feita ganância respiramos agora cinza. Asfixiamos o luto e encontramos oportunidades de negócio, porque esquecemos o real valor da Vida: “O consumir da vida de outrem para o seu próprio fim privado ou lucro.” Consumimo-nos.
Quem tudo quer, tudo perde.
Referências:
Montemuro – A Última Rota da Transumância, Artigo de · Janeiro 1999
https://www.researchgate.net/publication/256375116
A relevância da fitodiversidade no Montemuro – por Jorge Paiva
Undaunted: Living Fiercely into Climate Meltdown in an Authoritarian World, Baker, Carolyn
©Sofia Batalha 2022
[Disclaimer: Todas as palavras e conceitos tecidos no meu trabalho nascem através da minha Vida, naturalmente tendenciosa, e sempre limitada percepção das coisas, não assumindo que carreguem qualquer verdade absoluta. Escrevo a partir de um contexto de baixa intensidade sobre o norte global, em profunda consciência e responsabilidade pelo ecocídio e genocídio continuado pela modernidade.]
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Por Sofia Batalha
Sou ‘designer’ por formação académica, professora por acaso, escritora por necessidade visceral e investigadora independente por curiosidade natural. Sou mamífera, autora, mãe, mulher e tecelã de perguntas. Desajeitada poetiza de prosas sem conhecimentos gramaticais. Peregrina entre paisagens interiores e exteriores, recordando práticas cósmico-ctónicas em presença radical, escuta activa, arte, êxtase e escrita
Autora de nove livros e editora da revista online e gratuita Vento e Água, podcast Re-membrar os Ossos e Conversas D'Além Mar.