Arrancando todas as ervas daninhas
Como é que uma ideia o faz sentir?
Qual é o peso da sua alegria?
Existe um caminho sem ervas daninhas?
Qual é a textura da sua tristeza?
Qual é a cor das suas memórias?
Existe um caminho sem desvios?
Muitas vezes passo por portais de conceitos vivos, ideias, símbolos e metáforas através da escrita e aulas. Este limiar dá acesso a um lugar antigo e precioso. Através dele, tenho acesso à estranha paisagem de cada pensamento, palavra ou conceito, cada um com uma multiplicidade viva de reverberações entrelaçadas. A abertura destes fios de conceitos e ideias desdobra relações primordiais e complexas de informação com formas, pesos, melodias, texturas, cores e histórias – lugares dinâmicos cheios de diferentes perspectivas, pistas, fios, e numerosas ervas daninhas que crescem por todo o lado.
A abertura deste campo deixa frequentemente as pessoas com uma sensação de abstracção total, implicando a suposta separação entre o mundo prático-material do reino visionário, o lugar onde as ideias vivem. Sentem-se perdidas quanto ao objectivo ou meta final de caminhar por estas antigas paisagens vibrantes. Perguntam-me frequentemente: qual é o objectivo? Isto não é prático – tudo o que eu preciso de saber para chegar ao ponto A ao ponto B objectivamente. Por favor, dêem-me instruções claras, um método, um mapa, ou uma lista de afazeres. Dizem-me frequentemente que é apenas filosofia e teoria, no sentido de manter uma abstracção longe da realidade autêntica, exigindo sempre as instruções práticas passo-a-passo para mudar as coisas eficazmente. Mas, e se “o mapa de instruções” for recuperado ao nos perdermos nestes lugares ímpares e inúteis?
A hipostatização, ou a falácia do concreto equivocado
Já há algum tempo que estou sentada neste inquérito pessoal. Será um tipo de percepção neurodiversa através da qual sinto o peso, a forma ou a textura particular de uma ideia? Possivelmente, uma patológica através de olhos modernos reducionistas?
Tantas pessoas dizem ser apenas teoria ou filosofia, mas para mim, as ideias são uma prática contextual profunda. Ligar palavras, e conceitos através de todas as texturas e emoções é uma tecelagem selvagem de possibilidades íntimas, um esforço vivo e prático. Uma resposta profunda e instintiva complexa ao que é.
É claro que todos somos diferentes; a percepção de cada um é singular, com cada um dos nossos ricos universos enredados a reverberar em informação, contraste, e paradoxo. No entanto, sinto que as ideias não são abstractas, não estão longe ou inertes, habitando num reino impraticável em oposição à realidade objectivadora material. As paisagens visionárias das ideias não evitam a acção, mas sustentam-na. Na minha experiência corporal vivida, as ideias e conceitos não são desprovidos de peso, pois sinto os seus contornos, massa, presença e parentesco com as paisagens das suas próprias existências interligadas de forma dinâmica.
A hipostatização, ou transformar algo abstracto numa coisa, ou objecto concreto, fala que o mapa não é o território, onde uma percepção reducionista tenta confinar padrões de vida assumindo a sua constância. Infelizmente, esta ansiosa necessidade de estabilidade pode levar à criação de modelos estéreis (de facto sem ervas daninhas), onde a realidade complexa é constantemente mutilada para se encaixar. Mas também considero este conceito, algo limitado em si mesmo, pois não sustenta a natureza inerente da realidade paradoxal e ambígua em que vivemos, favorecendo a “verdade” unilateral-lógica e centrada no ser humano.
Assim, trabalhando através de possibilidades, com e dentro das ideias, sinto-me submersa na própria vida (através da minha percepção tendenciosa e com muitas ervas daninhas à volta).
O regresso dos pequenos deuses – contextualidade particular e profunda
Nesta cultura, reduzimos tudo, desde ecossistemas a culturas, criando um conhecimento perceptivo menor e diminuído da realidade. A monocultura do absolutismo omnipresente está em todo o lado, tentando sempre linearizar hierarquicamente tudo a uma só voz, perspectiva ou tom. Tudo o que se desvia da norma é errado, desqualificado, ou rotulado como patologia.
Os pequenos deuses e as plantas selvagens calaram-se, pois trocamos a segurança pelo absolutismo, negligenciando a profunda diversidade contextual que nos rodeia.
O ecologista Paul Sheppard refere que o recuo (genocídio capitalista-colonialista) da natureza selvagem diminui a complexidade da nossa psique. Além disso, Laura Sewall e David Abram falam sobre como o nosso olhar biológico de longa distância e profundo se desmoronou por todos os ecrãs a que estamos viciados – mais uma vez reduzindo a nossa capacidade cognitiva de percepção profunda.
Este constante reducionismo aliado ao absolutismo cultural é a razão pela qual o conceito de neurodiversidade é essencial. Embora tenha sido utilizado num sentido patológico limitado, precisamos dele como limiar para recuperar a singular diversidade das nossas percepções vividas e experimentadas. Isto inclui o que acontece fisicamente aos nossos corpos, abrangendo as emoções e as ideias.
Durante séculos, nesta cultura particular, com o seu empobrecido desapego da rica diversidade do mundo natural, um buraco tem vindo a abrir-se, esquecendo, e mutilando outras formas de percepção da realidade.
Nunca estou a falar em recriar um modelo absoluto, a quinta-essência de uma só receita, porque esse tem sido sempre o problema. Em vez disso, refiro-me a recordar a complexa diversidade sagrada nas suas muitas formas, permitindo que ela seja sentida mais uma vez no fundo. Tem a ver com o que se está em sintonia com os sentidos de todo o corpo quando se perdeu -muitos mais de cinco sentidos, todos a trabalhar numa melodia rítmica primordial.
Quando perdido, onde se olha, o que se está a sentir, o que se percebe? O empobrecimento cultural da percepção mantém-nos acima da superfície, mantendo obsessivamente um caminho impecável para a solução, conclusão, ou objectivo final. Não nos podemos perder, muito menos com ervas daninhas na nossa direcção. Assim, esforçamo-nos muito para manter o caminho recto e linear, erradicando todas as ervas daninhas que teimosamente continuam a crescer no nosso caminho para obter algo.
Mas as ervas daninhas continuam a invadir o caminho, enredando-se com as bordas da floresta, mudando a sua linearidade para uma corrente curvada de consciência. Eles atrasam-nos, pensamos nós. Assim, continuamos a erradicar todas as ervas daninhas porque não têm qualquer significado no objectivo que nos propusemos concluir, simplesmente distraindo-nos do objectivo final.
Embora a presença de plantas selvagens sustente e enraíze os paradoxos da própria vida. As ervas daninhas têm um convite sensível e profundo para activar o núcleo da diversidade perceptiva, pois são os pioneiros do solo nutricional, vegetação pioneira que vem em primeiro lugar para preparar o caminho da vida. Chamam a uma viagem íntima de calor e presença – a recuperação da nossa natureza instintiva criativa, do nosso eu cósmico-telúrico, libertando-o dos danos violentos por negligência que lhe infligimos culturalmente. É um convite que recria um espaço valioso e fértil de transmutação e de jogo.
A vida pode ser exigente, e nós procuramos segurança, e algo fixo para que nada descarrile mais uma vez – nunca se perca ou permita ervas daninhas no jardim. Compreensível e humano. Há toda uma fragilidade desconcertante quando se toca na constante transmutação da realidade tal como a conhecemos. Mas também pode haver uma maturação inevitável nesta árdua jornada – um crescimento. Este amadurecimento é um processo, não um destino ou solução. Toda a nossa integridade funciona com o que emerge no fluxo consciente e não apenas no controlo, co-criando em reciprocidade; não se trata de previsão ou de estar no comando. As nossas vidas não têm de encaixar em modelos “secos” ou “objectivos” porque esta matriz tem sempre de ser adaptada, alargada, ou alterada de acordo com as realidades de vida multicontextuais fundamentais que somos.
Não são as respostas finais, lineares, ou objectivas que podem decifrar um processo de vida multidimensional. O maior tesouro é que esta vida não se trata de conclusões, mas de descoberta e criação, através das quais podemos reconceber-nos, uma e outra vez, deixando as plantas selvagens florescerem e serem ouvidas uma vez mais.
Estamos a percorrer os caminhos criativos da vida, uma viagem cheia de desvios e lugares selvagens onde nos devemos perder vezes sem conta, recuperando a diversidade e acarinhando todas as ervas daninhas que crescem no nosso caminho.
[Disclaimer: Todas as palavras e conceitos tecidos no meu trabalho nascem através da minha Vida, naturalmente tendenciosa, e sempre limitada percepção das coisas, não assumindo que carreguem qualquer verdade absoluta. Escrevo a partir de um contexto de baixa intensidade sobre o norte global, em profunda consciência e responsabilidade pelo ecocídio e genocídio continuado pela modernidade.]
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Por Sofia Batalha
Sou ‘designer’ por formação académica, professora por acaso, escritora por necessidade visceral e investigadora independente por curiosidade natural. Sou mamífera, autora, mãe, mulher e tecelã de perguntas. Desajeitada poetiza de prosas sem conhecimentos gramaticais. Peregrina entre paisagens interiores e exteriores, recordando práticas cósmico-ctónicas em presença radical, escuta activa, arte, êxtase e escrita
Autora de nove livros e editora da revista online e gratuita Vento e Água, podcast Re-membrar os Ossos e Conversas D'Além Mar.