Terra Nullius e Tabula Rasa são dois conceitos interdependentes que fazem parte da lente cultural que nos envolve. O primeiro fala de terra vazia e de ninguém, simplesmente à espera de dono que a explore. O segundo refere-se ao nascer como folha em branco, pronto a receber referências e categorias exteriores.
Ambos se conectam no vazio simplista das coisas. Na objectificação dos lugares e povos e também das crianças. Ambos ignoram a complexidade inerente aos ecossistemas interdependentes que somos e dos quais fazemos parte. Ignoram que apenas a mutualidade recíproca sustenta a vida.
A objectificação ajuda ao distanciamento emocional e relacional, assim como à separação cognitiva, abrindo espaço para a exploração produtiva e extração de recursos, sem nunca ligar à correlação profunda que nos habita.
Terra Nullius
Em 1095, o Papa Urbano II emite a Bula Papal Terra Nullius, um decreto que posiciona a Igreja Católica sobre terras supostamente vazias. Este decreto dá aos reis europeus o direito de “descobrir” e reclamar terras em áreas não cristãs. Em 1452, o Papa Nicolau V estende esta política através do Projecto de Lei Papal Romanus Pontifex que declara guerra contra todos os não cristãos do mundo e autoriza a conquista das suas nações e territórios. Estes dois decretos são baseados em duas crenças. A primeira que os cristãos eram os únicos povos civilizados (moral e intelectualmente superiores) logo, tinham o direito de tratar os não-cristãos como não civilizados e sub-humanos que não tinham direitos nem nenhuma terra ou nação. Segundo, os cristãos tinham o direito dado por Deus de “capturar, vencer e subjugar os sarracenos, pagãos e outros inimigos de Cristo”, e de “colocá-los em escravidão perpétua”, e de “tomar todos os seus bens e propriedades”. Posteriormente, Portugal expandiu o seu território fazendo “descobertas” ao longo da costa ocidental de África e reivindicando essas terras como território português.
Assim, em 1492, quando Colombo navegou para o “Novo Mundo”, fê-lo com o claro entendimento de que estava autorizado a “tomar posse” de quaisquer terras que “descobrisse” que não estivessem “sob o domínio de qualquer governante cristão”. Quando regressou a Espanha, o Papa espanhol Alexandre VI emitiu outra Bula Papal a 3 de Maio de 1493, “concedendo” a Espanha o direito de conquistar as terras que Colombo encontrara, bem como quaisquer terras que a Espanha pudesse “descobrir” no futuro. O Papa Alexandre também declarou o seu desejo de que o povo “descoberto” fosse “subjugado e levado à própria fé”.
Quando Cristóvão Colombo pisou pela primeira vez as areias brancas da ilha de Guanahani, realizou uma cerimónia para “tomar posse” da terra para o rei e rainha de Espanha, actuando ao abrigo das leis internacionais da cristandade ocidental. Embora a história da “descoberta” de Colombo tenha assumido proporções mitológicas na maior parte do mundo ocidental, poucas pessoas estão conscientes que o seu acto de “posse” se baseou numa doutrina religiosa agora conhecida na história como a Doutrina da Descoberta. Ainda menos pessoas se apercebem que hoje – cinco séculos depois – o governo dos Estados Unidos ainda usa esta arcaica doutrina judaico-cristã para negar os direitos dos índios nativos americanos.
O decreto da Terra Nullius está até hoje validado pelo Vaticano.
Tabula Rasa
Tabula rasa, que no ocidente pode ser identificada deste Aristóteles, é a teoria de que os indivíduos nascem sem conteúdo intelectual incorporado, e todo o conhecimento provém da experiência ou percepção. Nascemos folhas em branco, sem referências ou margens, prontos a ser cheio de informação que vem do exterior.
Soberania
Ambos estes pressupostos são pilares invisíveis sobre os quais a cultura ocidental assenta.
Ambos impõem violentamente um poder externo em algo ou alguém (para além do ser humano), um poder que molda, categoriza e extrai. Ignorando o que é. Descartando os fios que tecem o que já lá está. Sendo surdo à melodia nuclear da realidade multifacetada. Sendo cego às delicadas subtilezas que tudo compõem. Desprezando as potencialidades emergentes a cada momento. Uma visão limitada e preconceituosa assente numa cosmovisão de objectificação linear de poder.
Ambos estes conceitos, subliminarmente presentes nas fundações culturais ocidentais, violam e desrespeitam a soberania de cada ser e de cada lugar. Recusam o contexto vital que tudo tece. Negam o reconhecimento do poder, competência e autoridade de tudo o que não seja linearmente compreensível. Ignorando capacidades, talentos e direitos. Violentando tudo o que ponha em causa o absolutismo da verdade única.
Sejamos crianças, lugares ou povos, quando nos negam a soberania inerente, negam a nossa existência enquanto seres autónomos (sempre interdependentes). Lugares e pessoas são normalizados à espera que encaixem nos limites do que a cultura permite.
A crença da Tabula Rasa e o decreto Terra Nullius mantém-nos num estado de profunda imaturidade, onde as directrizes, planos e categorias só podem vir de fora. São ambos traços de medo perante o paradoxo das coisas, pois se acreditarmos que apenas há uma verdade tudo fica mais simples. Ao seguir apenas uma verdade cegamo-nos perante a nossa própria soberania. Calamos as nossas vozes, aquelas que incomodam e revolucionam. Engolimos e repetimos a rotina uma vez mais. Silenciamos a alma para sermos aceites na sociedade.
Assim como as terras “descobertas” nunca estiveram vazias de povos, culturas, histórias, mitos e memórias, também as crianças não nascem vazias de si próprias. Todos os lugares e os seus habitantes são imanentemente sagrados.
Reclamemos de novo a participação testemunha e critica na teia das coisas.
Referências:
http://gorhistory.com/AmericanSamoa/DoctrineDiscovery.html
http://ili.nativeweb.org/sdrm_art.html
https://en.wikipedia.org/wiki/Tabula_rasa