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E se fossemos narrativas em vez de personalidades?
E se, em vez de sermos determinada personalidade, assumíssemos que somos várias histórias, múltiplas narrativas, mutáveis e sazonais, cada uma com o seu tom e ritmo?
Em vez de “esta é a minha personalidade” disséssemos “estas são as histórias que sou.”
Ou “estas são as histórias que somos, as herdadas, as esquecidas e a vividas”.
A palavra personalidade vem diretamente do latim medieval personalitatem. O significado de “um carácter essencial distintivo de um ser autoconsciente” é registado em 1795, do francês personnalité. O significado de “pessoa cujo carácter se destaca do dos outros” é de 1889. Enquanto o culto da personalidade “devoção a um líder encorajada com base em aspectos da sua personalidade, em vez de considerações ideológicas ou políticas”, é atestado em 1956.
Antes de avançar, quero notar o contexto e traços da visão ocidental sobre personalidade, tais como: realização suprema (transcendência), afirmação absoluta de tudo (absolutismo), condições universais da existência (universalismo) e maior liberdade possível de autodeterminação (individualismo ocidental). Estes conceitos inevitavelmente ecoam formas de discurso e pensamento ocidental. Tenho falado sobre estes vícios na forma de ver e ser mundo do norte-global – transcendência, absolutismo, universalismo e individualismo – em vários artigos, aulas e livros. Quero notar que os resíduos e ‘nuances’ destes conceitos subjacentes à ideia de personalidade tendem a criar expectativas cristalizadas de pureza, muitas vezes ignorando o movimento, os limiares, o hibridismo e a inevitável impermanência, o movimento imanente de “se tornar com.”
Naturalmente que personalidade vem de pessoa, que vem diretamente do latim persona “ser humano, pessoa, personagem; um papel num drama, personagem assumido”, originalmente “uma máscara, um rosto falso”, de madeira ou barro, cobrindo toda a cabeça, usadas por actores. Pode estar relacionado com o latim personare “soar através de,” a máscara como algo para falar através que amplifica a voz, mas também possivelmente emprestado do etrusco phersu “máscara.” Os significados “o ser físico de alguém, o corpo vivo” e “aparência externa” são de finais do séc. XIV, em pessoa “por presença física” é da década de 1560.
Pessoa, afinal, vem de máscara, e personalidade como a máscara que usamos. Temos, no entanto, de deslindar o significado mais profundo de máscara. Adapto o que escrevi sobre as máscaras no livro “Um Lugar Feliz”: “Desde a Antiguidade que as máscaras são usadas em processos sagrados de conexão e transmutação, usadas por xamãs para ligação ao mundo dos espíritos. As máscaras permitem-nos transmutar e modificar a realidade, pois são pontes para arquétipos, podendo representar materializações simbólicas incorporadas. Tanto assim é que muitas culturas contextuais usam a força da máscara em cerimónias e rituais de invocação e incorporação. Mas hoje em dia, as máscaras são tidas como algo muito negativo, o que faz como se nos fosse retirada a capacidade de transmutar e experimentar, pois passaram a ser vistas como algo que contém ou a esconde. ”
E o que é a personalidade senão a incorporação e supressão da multitude de traços expressivos e responsivos que carregamos? Que possamos usar diferentes máscaras que nos abrem a diferentes versões de nós próprios, pois nunca fomos só uma coisa, nunca carregamos apenas uma história. Cada máscara um personagem nas múltiplas histórias em que participamos.
Não esqueçamos também a máscara, usada pelos actores greco-romanos, por onde soa e que amplifica a nossa voz, tal como a raiz da palavra pessoa nos indica. Então, tal como um actor que muda de máscara em função da história e da personagem que está a incorporar no momento, também nós podemos mudar, complementar e transformar as múltiplas máscaras e histórias que nos compõem. Também nós nos adaptamos a contextos diferentes, activando variadas partes de nós, em fluxo de aceitação e fusão com o meio ambiente.
Ao nos abrirmos, não a uma personalidade, mas às várias histórias, às múltiplas narrativas, mutáveis e sazonais, que nos compõem, aceitamos a inevitável ligação com a porosidade e transformação, permitimos não querer ser um produto acabado, mas um verbo e movimento em metamorfose.
Em vez de “esta é a minha personalidade” disséssemos “estas são as histórias que sou,” “estas são as histórias que somos, as herdadas, as esquecidas e a vividas”.