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Contos Antigos para os Tempos Modernos
O limiar de quando éramos paisagem
Há vinte anos que trabalho com pessoas e lugares, e também escrevo contos fabulados a partir de realidades pré-agrárias, ecoando sussurros da terra, recordando antigos modos de vida xamânicos na Península Ibérica. Estas histórias contextuais não são fugas dos tempos perigosos em que vivemos. Pelo contrário, reclamam que regressemos inteiros, responsáveis, e plenamente presentes, lembrando-nos de que somos paisagem. Estes fios tecem recordações de quem somos, não os nossos eus superficiais e egoístas possibilitados pela modernidade, mas o nosso núcleo de sabedoria comunitária viva e profundamente enraizada que contempla a vida como sagrada e faz parte da sua teia cíclica cósmico-ctónica.
Contos da Serpente e da Lua
Sejamos francos, aqui na Península Ibérica, temos perdido partes fundamentais da nossa sabedoria indígena local desde há três mil anos. Esta trágica perda de culturas de reciprocidade e responsabilidade permitiu, 1500 anos mais tarde, as invasões, genocídio e ecocídio perpetrados pelas nações ibéricas (e europeias) no século XV. A modernidade está a ser cozinhada há muito tempo, um trauma de cada vez, e a pergunta onde estes contos assentam é quem éramos nós antes de toda esta violência e dissociação?
Claro que, nas zonas rurais portuguesas, ainda hoje existem fragmentos deste antigo conhecimento ecológico; podemos tocar esta sabedoria arcaica através de histórias populares, canções, rituais sazonais, orações, sabedoria herbal, e cura tradicional. A dignidade original está sobretudo perdida e o tecido conjuntivo é demasiado frágil, mas esta antiga forma de estar no mundo está dentro dos nossos ossos. Estes contos são uma forma de recordar.
Então, por que são estes contos importantes agora?
A modernidade conduziu-nos por um caminho linear de sentido único, com um olhar mecanicista, onde o mundo está morto e pode ser categorizado, fragmentado e alegadamente podemos avançar para estas categorias de forma pura, pois temos a crença de que são desvinculadas de ideologias ou neutras em valor moral. O cosmos é como um relógio, neste olhar antropocêntrico reducionista. Esta dissociação catastrófica da sabedoria viva contextual foi possibilitada por um único deus no céu, o medo e a necessidade de controlo, dando lugar ao extrativismo mortal que torna possível a tecnologia e o conforto modernos.
Acredito que os mitos e contos antigos são guardadores da complexidade, testemunhos de inter-relações num sistema ecológico cósmico.
Esta profunda e misteriosa interpenetração sistémica entre “eu”, o mundo e outros é algo que os povos indígenas, artistas e poetas sempre souberam. Recordar esta forma responsável e recíproca de estar no mundo é tecer-nos de volta à própria vida.
Assim, estes contos fabulados e arracionais pegam em fios e cacos de descobertas arqueológicas em Portugal, tecendo arquétipos simbólicos em pequenas narrativas. Cada história tem a sua própria pesquisa sobre os fios e as texturas que lhe dão voz.
O convite destes contos não é previsível, de simples relações de causa e efeito, porque o todo não é exactamente a soma das partes. A dimensão fractal e caleidoscópica em que agora nos movemos abre a porta a sistemas não lineares, onde as partes interdependentes contribuem para o todo de formas multiplicativas, e as simples relações de causa e efeito quebram-se. Através da não-linearidade, abrimos uma ponte directa para a contínua complexidade da vida. Como diz Marks-Tarlow, a lógica quotidiana, pela qual utilizamos o pensamento do cérebro esquerdo para separar e compreender a experiência, discernindo causa e efeito para calcular mentalmente o nosso próximo passo, é tanto linear como redutora.
A viagem na Cartografia Cósmico-Ctónica implica que não podemos separar pessoas, paisagens, ou relações a qualquer nível, quer literal ou simbolicamente, sem destruir a sua totalidade e integridade, pois a metamorfose dinâmica e a transformação essencial à vida ocorre sempre orgânica e fractalmente, numa regra não linear, em contraste com a excepção linear.
A Oferta
A narrativa destes contos tem lugar num tempo arcaico, onde os animais ainda falam e o “outro” está ao alcance do diálogo sagrado porque ainda não está demonizado.
Estes são contos de paisagens onde as mulheres não foram drasticamente obrigadas a esquecer a sua soberania, e onde não foram violadas, raptadas, ou levadas à força. Estes contos contrariam as hagiografias, as histórias de santos, onde o sagrado é exclusivamente antropomorfizado e unicamente no diálogo humano, criando uma monocultura da transcendência limitada ao mito do herói masculino.
Aqui caminhamos deliberadamente numa paisagem mítica feminina e ctónica, em intimidade visceral com as profundezas sagradas da terra, numa peregrinação imanente de katabasis, a antiga descida aos mundos sagrados subterrâneos que compõem a geografia da morte.
Os Contos da Serpente e da Lua seguem os princípios profundos da experiência xamânica e animista. Que nos lembremos!
Resumo
- Quando nos movemos com os contos vivos, toda a nossa ecologia se move – com ferocidade e suavidade, voltamos a ser paisagem.
- Lembramo-nos das nossas complexas raízes pré-coloniais e culturas de responsabilidade e reciprocidade.
- Recuperamos a antiga sabedoria contextual, somática, ecológica, xamânica e animista, da Península Ibérica.
- Recordamos que vivemos numa ecologia cósmica e ctónica sensível e consciente.
- O Mistério, as Metáforas e os Mitos recordam urgentemente a nossa sabedoria primordial e complexa do paradoxo.
- Recordemos outras formas de pertencer e proteger ferozmente as nossas paisagens, regenerando a nossa consciência de volta das terras devastadas e das ruínas da modernidade.
- Voltem a prestar contas, tecendo fios locais comunitários enraizados em antigas matrizes arquetípicas.
- O primeiro passo é ler/ouvir uma história e deixá-la funcionar dentro de si…
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* Estes contos foram originalmente escritos no meu livro “Contos da Serpente e da Lua”, ISBN: 978-989-9005-84-6. Todas as ilustrações são da autoria de Carolina Mandrágora. Editado em Portugal pela Mahatma Editora.
* Este conceito de modernidade – um mito ocidental a-histórico, científico, capitalista e de excepcionalismo moral – segue as linhas de autores como Vanessa Andreotti e o GTDF Collective, Bayo Akomolafe, Nora Bateson, Pegi Eyers, Pat MacCabe, Julie J. Morley, John Broomfield, Donna Haraway, Fikret Berkes, Barbara A. Bickel, Bill Devall, David Turnbull, Gordon Whyte, Marna Hauk, Jo-Ann Archibald, Jürgen W. Kremer, Nick Totton e inúmeros outros que fazem trabalhos essenciais, não do ponto de vista binário/polarizado/puro, ao criticar as lentes limitadas e violentas da modernidade.
* Marks-Tarlow, Terry. Psyche’s Veil Psychotherapy, fractals and complexity. Taylor & Francis, 2008.
[Disclaimer: Todas as palavras e conceitos tecidos no meu trabalho nascem através da minha Vida, naturalmente tendenciosa, e sempre limitada percepção das coisas, não assumindo que carreguem qualquer verdade absoluta. Escrevo a partir de um contexto de baixa intensidade sobre o norte global, em profunda consciência e responsabilidade pelo ecocídio e genocídio continuado pela modernidade.]
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Por Sofia Batalha
Sou ‘designer’ por formação académica, professora por acaso, escritora por necessidade visceral e investigadora independente por curiosidade natural. Sou mamífera, autora, mãe, mulher e tecelã de perguntas. Desajeitada poetiza de prosas sem conhecimentos gramaticais. Peregrina entre paisagens interiores e exteriores, recordando práticas cósmico-ctónicas em presença radical, escuta activa, arte, êxtase e escrita
Autora de nove livros e editora da revista online e gratuita Vento e Água, podcast Re-membrar os Ossos e Conversas D'Além Mar.