A Voz do Feng Shui
O Feng Shui deu-me voz. Durante anos de investigação e prática dediquei-me aos seus segredos e ensinamentos, segui os seus passos ancestrais e trouxe-o renovado ao aqui e agora.
O Feng Shui enquanto sabedoria dos lugares é, na verdade, atemporal e transcultural, estando presente, de formas distintas e particulares de cada lugar, nas diferentes partes do globo. Claro que falo do conhecimento intrínseco e reciproco dos lugares que nos acompanha há milénios, daquela relação primeira e visceral, não necessariamente enformada pela metafísica chinesa.
O Feng Shui foi o portal por onde adentrei outra compreensão e percepção do mundo, dos seus ritmos e vidas. Trouxe-me muito, pois, ao compreender os lugares, compreendi-me a mim mesma.
Quero, no entanto, clarificar o que significa para mim Feng Shui, quais as peças fundamentais desta visão integradora da realidade que somos.
Primeiro não é uma ferramenta de harmonia individual, mas sim um conjunto de práticas contextuais de abundância comunitária. Na sua génese, esta relação primordial com os lugares que somos e vivemos não tem nada a ver com regras absolutas “do melhor sítio para a cama ou o fogão”, ou com a “harmonia da minha casa”. É, na verdade, uma prática comunitária de gestão de crises e abundância, cuja função é manter viva e próspera a comunidade, bem nutrida, alimentada e com boas relações com o contexto vivo que habitam. Então esta antiga arte lê os padrões meteorológicos, prevê catástrofes e procura o melhor lugar para viver prosperamente, com água limpa e alimento circundante. Cuidando dos locais cheios de vida, onde os espíritos do lugar não foram ainda domesticados ou mutilados.
Em segundo lugar quando aplicamos esta arte nas nossas casas ortogonais modernas, esquecemo-nos dos seus primórdios e tentamos usá-lo para benefício (exclusivamente) pessoal, para a nossa harmonia e abundância (que hoje em dia troca o valioso fluxo de vida com o do dinheiro). Procuramos receitas certas para os melhores locais do sofá, da cama ou do fogão, de forma a evitar catástrofes (resquícios da antiga prática fundamental do Feng Shui?), mas confundimo-lo com decoração ou arrumação. Mantemos as nossas casas higienizadas e organizadas a todos o custo, pois, “a ordem visual descansa o cérebro”, e os ambientes organizados trazem outra qualidade de vida. É certo. Mas porquê? Já pensamos porventura nos milhões de anos de evolução biológica, bioquímica, bioelétrica dos nossos corpos em relação aos lugares e paisagem que habitam? Porventura imaginamos que a enorme potência da nossa visão de fundo e em profundidade, a que tem a capacidade inata de discernir ao longe é a força de detectar os mais delicados padrões num caos selvagem? Já parámos para sentir o quão superficializada e limitada se encontra a nossa visão de fundo – por todos os ecrãs bidimensionais para onde olhamos horas a fio – tornando-se uma sombra do que já foi?
De que forma estas paisagens do lado esquerdo do cérebro, sempre ortogonais, higienizadas, assépticas e organizadas ao milímetro, suspendem a nossa compreensão sensorial do mundo? Limitando profundamente a nossa capacidade de viver e entender os contextos vivos e caóticos, que vibram num pulsar profundo guiados por maestros misteriosos. Limitação essa que aplaina o discernimento de padrões na complexidade selvagem?
Em terceiro lugar temos também a moderna crença dissociada, que faz procurar peças que harmonizem o meu ambiente, seja mobiliário, velas, incensos, cristais ou óleos essenciais, independentemente do seu impacto de onde são extraídos (quando comprados a fornecedores pouco éticos, massificados ou conscientes), em que condições sociais ou ecológicas e que marcas deixam na terra. Irreversíveis por vezes. Mas desde que a minha casa esteja e se mantenha harmoniosa, assim o justificamos unilateralmente.
Acontece que nada disto é Feng Shui, apenas práticas modernas redutoras que não representam em nada esta sabedoria contextual ancestral.
A nossa casa-individual nunca está desligada da casa-mundo e não podemos obliterar esta relação. A que custo e sobrecarga de extracção, possivelmente no sul-global, ou bem longe da nossa privilegiada porta, ousamos exigir a constante “harmonia do nosso lar”?
O tempo de agir em consciência e responsabilidade já iniciou há mais de 30 anos, mas tardamos em assumir que a nossa abundância e harmonia estão intrinsecamente ligadas às zonas de mineração que implodem ecossistemas inteiros, comunidades e crianças, que a roupa que vestimos e compramos cegamente tem custos sistémicos violentíssimos. Não serve este texto para abrir um buraco de culpa, mas para dar contexto de forma a decidirmos diariamente de outra forma. Isto porque o Feng Shui nunca foi apolítico e o nosso bem estar também não.
Acredito no Feng Shui e na sua sabedoria contextual ancestral de observação e conhecimento íntimo dos lugares que habitamos e que somos, confio na sua potência de olhar o mundo de forma inteira e viva, dinâmica e activa. Mas para isso temos de sair da porta e assumir a responsabilidade pela nossa vivência e o seu custo real.
Por tudo isto transformei as minhas formações e consultas, reverenciando a delicada potência da vida, pois só ela me guia.